sábado, 28 de março de 2009

"Sita Sings the Blues" - o caso de Nina Paley

"Sita Sings the Blues"(2008), da cartoonista e animadora norte-americana Nina Paley, é um filme notável por diversas razões. Em primeiro lugar, é um filme catárctico, pois nele a artista expõe e ultrapassa as suas mágoas, no relato do fim do seu próprio casamento, terminado com uma seca e curta mensagem de email, enviada pelo marido, enquanto a artista se encontrava em viagem de negócios em Nova Iorque. Neste relato estão patentes todos os pequenos sinais do fim da relação que Nina viu mas que não quis ver ou compreender como tal...
Em segundo lugar, por ser refrescante observar a maestria com que foi elaborado este filme, independente das grandes produtoras de cinema de animação, que combina a técnica tradicional de desenhos animados (2D) com a técnica das sombras indianas/indonésias e da inclusão de imagens de ilustrações tradicionais indianas. Nina Paley escolheu quatro diferentes traços de desenho, para distinguir as diferentes narrativas: a história pessoal do fim do casamento de Nina é desenhada com o traço rápido, esboçado, característico da artista, história esta que se intercala e confunde com a história de Sita, esposa de Rama, rei de Ayhodhya, o protagonista de um dos maiores poemas épicos da Índia, o Ramayana. A história de Sita é narrada por sombras indianas, que vão discutindo entre si, com grande sentido de humor, a sucessão dos acontecimentos em Ramayana, apresentados na forma de ilustrações tradicionais indianas da história. Por fim, sendo um musical, a cada passo da história notabilizado por uma canção, surgem desenhos primorosos no mais pequeno detalhe, embora de síntese caricata dos estereótipos do cinema mudo do início do século XX (o estereótipo do herói de grande estatura, ombros largos e queixo forte; da bela donzela frágil, de grandes olhos pestanudos, acentuados atributos e cintura de vespa; do grande vilão de bigodes negros retorcidos...), movimentando-se igualmente como bonecos de sombras articulados.
Em terceiro lugar, porque Nina Paley combina neste filme a música indiana tradicional com canções de jazz dos anos de 1920, de Annette Hanshaw, cujos temas e ambientes surpreendentemente se enquadram de forma perfeitamente lógica na história e no estilo de desenhos criado para essas canções, proporcionando-nos momentos de enorme prazer.
Em último lugar, porque este filme se encontra no centro de duas grandes polémicas relativas aos Direitos de Autor: no que se refere ao uso das canções de Annette Hanshaw, cujos Direitos Autorais de há mais de 70 anos já cessaram, mas que os Direitos de Distribuição e de Comércio da Editora original impedem Nina Paley de poder comercializar o filme em DVD; e ainda no que se refere à opção de livre distribuição e partilha deste filme, por Nina Paley ser uma fervorosa activista da Cultura Livre, o que tem gerado polémica entre os artistas, por considerarem que isso poderá pôr em risco os seus futuros Direitos Autorais e lucros financeiros.
No entanto, acrescente-se ainda que o interesse deste filme reside igualmente no facto de a artista, perante o fracasso do seu casamento, na impossibilidade daquela relação amorosa, (na impossibilidade de satisfazer a sua pulsão naquele sentido), transferir essas energias para a criação e produção bem sucedida de uma obra artística com base na sua experiência pessoal, numa partilha que foi e que continua a ir ao encontro da experiência de milhares de pessoas à volta do mundo, constituindo mais um bom exemplo da sublimação freudiana, [1] conceito retomado por Lacan,[2] também do ponto de vista artístico.
Este filme foi realizado por Nina Paley de forma parcelar, por episódios, reunidos em versão longa em 2008, tendo sido apresentado no Festival Internacional de Cinema de Berlim, em Fevereiro desse ano.
Para ver o trailer do filme, clique na imagem. Para ver o filme na sua versão integral, clique no link disponibilizado em "Filmes de Desenho Animado", na coluna direita deste blogue.

Aqui ficam referidos o site do filme:

www.sitasingstheblues.com/

E o blogue da artista, com a sua biografia e outros trabalhos:

www.ninapaley.com/

Notas:

[1] "A sublimação das pulsões constitui um dos traços que mais sobressaem do desenvolvimento cultural; é ela que permite as actividades psíquicas elevadas, científcas, artísticas ou ideológicas, desempenhando um papel bastante importante na vida dos seres civilizados."

(Sigmund Freud, Mal Estar na Civilização, 1930)

[2] E conforme é explicado exemplarmente pelo Prof. Doutor João Peneda, no seu ensaio "Pulsão e Sublimação":

"Assim, se a experiência do sublime proporcionava uma experiência que apresenta a inadequação, a impossibilidade de atingir a Coisa, objecto perdido do desejo, sublinhando que a Coisa está para além do representável, o objecto artístico, por seu lado, vem ocupar o lugar da Coisa em falta, "vem envolver esse vazio"; a esse respeito, temos o exemplo de Lacan do vaso como objecto primordial da produção humana, mostrando que o objecto artístico é um "certo modo de organização em torno desse vazio" (S-VII, p. 162). Deste modo, na sublimação, o objecto artístico vem substituir-se à Coisa em falta, representa em parte o gozo perdido; só que, ao contrário do que sucede no sintoma, aqui o sujeito não está submetido a um gozo acéfalo que o percorre, mas conquista supremacia ao domar e modelar esse gozo segundo os propósitos da sua arte."

(Peneda, João, in "Pulsão e Sublimação", Carta ACF 14, Jan.-Mar. 2000, § 13)

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